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Ao papai 8 de agosto, 2020

 O tempo é de fato o remédio mais curador, que ingerimos conforme nossa bula interna prescreve. Não é possível aprender com o tempo dos outros... Somos impacientes com nosso tempo e com o tempo necessário aos outros. Mas quando finalmente, nossas doses de tempo fazem efeito, é como se o caminho todo percorrido se iluminasse. Infelizmente, somos pouco sensíveis ao amor, mas a dor, depois de passado o tempo, grande ou pequeno, nos traz valiosas lições. Deveria ser diferente, mas para poucas pessoas é.

Nessa relação de família, nessa relação com os pais, com o meu pai especialmente, porque é a ele quem desejo homenagear, criamos diversas teorias sobre como ela deveria ter sido e muitas vezes, levamos muito tempo para perceber que ela é o que acontece todo dia.

Nos afastamos justamente daquilo ao que precisamos estar próximos para podermos compreender a razão de estarmos exatamente onde estamos. Vamos e voltamos. Muitas vezes esquecemos que justamente o que nos leva para longe é aquilo que mais se parece conosco, porque está em nós.

E nesse princípio de identificação, que muitas vezes nos faz enxergar apenas as coisas menos boas, acreditamos que o afastamento é a solução mais eficiente. Como se pudéssemos apagar as pessoas e as histórias que temos com elas. Como se isso tudo não fizesse parte de nós. Mas esse é um grande engano, porque faz...

Ir e voltar faz parte de nós. Onde quer que estejamos, tudo isso está conosco, mesmo que não queiramos enxergar. Como aquelas velhas papeladas que acreditamos que um dia vamos usar, guardamos os sentimentos em caixas de arquivo morto, mas há um dia, aquele em que as doses de tempo começam a fazer seu efeito, em que precisamos abri-las. E assim, as vamos vasculhando e recatalogando o que de fato ainda tem sentido guardar. Com nossos sentimentos, os vamos vasculhando e os recatalogando não de maneira a apagá-los, mas trazer a eles novo significado. Não imaginário, nem fantasioso, mas na medida em que os podemos comportar com a compreensão que temos agora, que aquelas doses de tempo nos ajudaram a sanar.

Sempre coube a cada um de nós, estabelecer com as pessoas, a relação que achamos essencial ter com elas. Não é diferente para ninguém, mas cada um de nós percebe conforme seu próprio tempo.

A verdade é que quando se trata do pai, não podemos simplesmente sair e bater a porta. Pai devemos honrar, isso é mandamento da lei divina. Não há prosperidade espiritual que nos alcance se quisermos fugir disso.

Pai tem necessidade de ser pai e não podemos tirar isso dele, porque nós também temos necessidade de ser filho. Não podemos interferir na decisão do pai, nem julgá-la, só podemos compreendê-la, porque nós somos filhos que também carecem ser compreendidos.

Em nós há muito do pai. Quando eu lembro do meu pai vem a minha mente muitas coisas, algumas eu classifico como boas e outras como não tão boas. Mas esta é a minha classificação e cada um tem a sua. Também na minha classificação eu decidi escrever sobre as boas, porque as não tão boas eu desejo reclassificar.

Uma das coisas mais importantes que aprendi com meu pai foi sobre consertar as coisas. Há um tempo atrás eu acreditava que isso era aplicável apenas aquilo que era material, àquelas coisas que se quebram ou têm peças estragadas e que se consertadas, podem voltar a funcionar, ou se não voltarem a funcionar, podem dar vida a novas coisas. Hoje eu entendo que “consertar as coisas” têm um significado maior. Meu pai já transpôs inúmeras barreiras por mim, barreiras as mais variadas que se possa imaginar. Quando eu era pequenina e também agora que sou adulta e as barreiras são mais desafiadoras.

Com meu pai aprendi, dentre tantas mil coisas, que não se deve prometer algo que não se intencione cumprir e isso não quer dizer que ele tenha cumprido tudo que prometeu... Mas há um outro lado importante: ele cumpriu comigo, coisas que jamais havia prometido.

Então depois de muito tempo, prescrito em doses que duraram anos, eu encontrei uma maneira de descobrir pequenas coisas que podem fazê-lo sorrir. Algumas vezes eu sorrio com elas também, outras nem tanto, mas isso não vem ao caso agora.

Há coisas que eu deveria ter vergonha de admitir, porque é uma desonra sentir. Então não vou falar delas, até porque, depois de certo tempo, eu deixei de senti-las. Mas há algo que eu sinto, curada pelas doses de tempo, que é um desejo incansável de melhorar sempre a nossa relação, mesmo que às vezes, eu até precise me afastar um pouco dele. Agora o afastamento vem pra que eu enxergue as coisas melhor e antes de esbravejar me inunde de paciência.

Eu quero preencher minhas lembranças, as lembranças que tenho com ele, por tardes ensolaradas de terça-feira colhendo frutos no pé. De dias de pescaria. De contação de histórias de família. De filmes na TV. De mudas de plantas e dicas de plantio. De procurar satélites no céu. De me lembrar de levar guarda chuva e casaco. De perguntar se eu já comi. De pedir mandioca frita. De passeios aventureiros. De fazer-me pequenos favores como segurar os tecidos de maior tamanho para eu poder cortar. De lembrar de comprar pequenas coisas de que gostamos. De lembrar de passar café fresco porque está chegando o horário de irmos visitar. De ligar dizendo que vem me ver e viajar com frequência para não me deixar sozinha. De me lembrar de ir ao médico. De aprender a fazer uma ou outra coisa de um jeito diferente para me agradar. De me dizer pra não ler com pouca luz para não estragar meus olhos. De elogiar uma ou outra comida que faço. De ser um avô joinha! De ter aquele orgulho de ser pai, nosso pai. De nos manter como uma família, mesmo quando não tínhamos mais a mamãe. Tantas coisas! 

Às vezes, agora depois de curada pelo tempo, prescrito em doses que duraram anos, eu acordo com uns soluços, uns lampejos de tristeza, em imaginar que talvez chegue um dia em que eu vou chorar com saudade dele reclamando que eu não sei cozinhar arroz...


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