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Simplesmente desviver pareceu mais legal 24 de agosto, 2020

 As pessoas sabem pouco sobre a morte, mas, se pudessem discorrer sobre isso, teceriam muitas opiniões, inclusive sobre como se deve comportar diante dela...

Abriu seus olhos lentamente... As pálpebras estavam pesadas, havia uma massa liguenta de muco que impedia seus olhos de enxergarem desanuviadamente... Naquele instante lhe ocorreu que estivesse morto porque tinha muita gente chorando e não conseguia ter certeza se era assim para todos, mas em geral, pelo que sabia da vida, as pessoas sempre resolviam chorar por quem morreu. Era diante da morte que lhes vinha o desejo de pedir perdão por tantas coisas: pela falta de gentileza, pala falta de paciência, pelo desamor, por um alívio inconsciente, por pensar nos projetos com a herança que iriam receber, por se verem sozinhas pra terminar de criar os filhos, por revolta por terem sido abandonadas, por não saberem o que fazer sem aquele ser cuja vida terrena se esvaía.

Os que estavam no leito de morte, em geral também pediam perdão, mas a reação dos que permaneciam vivos parecia sempre ser mais chamativa. Era ali diante da morte que as pessoas pensavam e muitas vezes verbalizavam, como poderia ser a vida se houvesse uma nova chance. 

Por isso ele pensou que estivesse morto. Via as pessoas ao redor se reunirem aos montes, algumas até que não via há tempos, outras que via com frequência, mas com quem não falava mais. E pensava vendo a cena que não tinha sido muito eficiente em conectar-se mesmo com algumas dessas pessoas. Mas ainda assim, isso lhe causava grande curiosidade. 

De um lado aquela gente toda e de outro tudo ficando cada vez mais distante, como quando se olha as coisas do alto. Vez ou outra recebia um baque, como se fosse puxado novamente pra perto delas e lhe inquietava novamente não ser mais dono do seu caminhar, mesmo sendo saudável e pleno em seus movimentos. Parecia ter morrido, mas continuava sentindo coisas que uma pessoa morta não deveria sentir. Não conseguindo sair dali, como tudo que fazia na vida, resolveu observar as pessoas e vez ou outra, atinha-se à fala de alguns sobre as diversas formas que alguém encontra pra desviver e de outros, sobre as quantas coisas precisavam ser ditas diante da morte. 

Achava aquilo uma grande demagogia, principalmente a parte das possibilidades, porque era bastante óbvio que quem está no leito de morte, ou que acabou de morrer, não iria seguir o caminho inverso ao da morte, portanto, não se poderia colocar em prática todas aquelas ideias de viver de forma diferente, nem pro morto e nem pra quem permanecia vivo. Esta possibilidade de um outro fim para as relações humanas conturbadas era irreal, ao menos do ponto de vista lógico. 

Como era de costume, ele não era muito de falar, então poderia permanecer horas ao lado de alguém, sem sequer se dirigir às pessoas. Mas era comum que soubesse porque ia a determinados lugares e também saía deles se não lhe agradava estar ali. Mas não conseguia compreender porque não conseguia sair daquele lugar especificamente, como que magnetizado por ele. 

Via e sentia as pessoas, mas não sabia onde estava, seus olhos ainda estavam turvos e levemente iam se descolando em meio àquela massa liguenta. Parecia um dia normal, porque sempre acordava assim, com os olhos remelentos. Mas era recorrente a ideia de que se não estivesse vivo, aquilo tudo só seria uma comprovação de que o modo como pensava esteve sempre adequado à realidade que vivenciava. E era recorrente também a ideia de que não seria má ideia não estar vivo, porque sempre pensava naqueles momentos em que se sentia impotente diante da não possibilidade de mudar o mundo a sua volta, mesmo que lentamente, e por isso precisar buscar outro mundo, onde as pessoas complicassem menos as coisas durante uma vida inteira, aquelas coisas que deveriam ser simples, para não precisarem no final da vida, fatorar tudo e chegar a um divisor comum... 

Ele de fato, tentara de várias formas fazer isso, inclusive mergulhando no mundo abjeto das drogas e das pesquisas sobre como morrer. Se estivesse mesmo morto, pensava que seria provavelmente por uma overdose ou por colocar em prática uma das tantas formas pesquisadas sobre como dar cabo da vida. Aquelas pesquisas que ele escrevia num caderninho, de capa gasta, onde se lia “simplesmente desviver pareceu mais legal”. Não que não tivesse tentado o suficiente, porque pra isso ou sempre lhe faltava coragem, ou sempre tinha coragem demais, ou sempre pensava que não era uma forma realmente eficiente. E que a sua vida medíocre deveria ser digna de notável lembrança, mesmo na morte.

Caso tivesse de dar cabo de sua vida, dentre as várias formas que pesquisava, queria aquele que fosse certeiro e que fosse também original. E pode acreditar, tinha ideias mirabolantes e funcionais sobre isso! Imaginava que a morte deveria ser mais ou menos uma experiência Montaignesca, de sentir as coisas para poder falar delas com propriedade, mas para isso, no caso de sua morte, não haveria volta, não poderia contar sobre essa experiência e talvez por isso, chegava sempre bem perto dela, mas nunca às vias de fato.

Antes de qualquer coisa, sua perspectiva sobre as pessoas era muito crítica, embora, como você já sabe, era de falar bem pouco. Aquele tipo de pessoa que passa a vida à espreita das vidas que compartilha e que tem opiniões várias sobre tudo, mas nunca diz nada. Assim também é que coletava ideias sobre como morrer. E ali onde estava não era diferente: observava e coletava informações para criar logísticas de proceder. 

Poderia estar morto, mas se sentia vivo. E se continuava vivo, essa seria a experiência de maior choque de realidade que teria. Não lhe agradava estar ali, mas não conseguia sair, como você já sabe, quase que magneticamente atraído.

Continuando a perambular por ali, com seus olhos cada vez mais desanuviados, cada vez menos liguentos, começou a perceber que sua presença que sempre era tão pouco percebida, passou a ser notada, como se precisasse do consolo de todos por ali. Gente que nem lhe abraçava, que nem sequer lhe dizia bom dia, a começar na casa onde morava, com sua própria família. Não era mesmo de aceitar agrados, nem dispensá-los a alguém. Um ser assim, que aos olhos dos outros, nem fazia diferença estar ali. Assim era como ele via. Por isso novamente pensou que pudesse estar morto, porque todo mundo quer ser gentil com o morto. A sensação que tinha era que precisa passar por aquelas pessoas pra chegar em outro lugar e ver o que tinha vindo ali pra ver. Sentiu como se estivesse num daqueles shows, lotados de gente, tentando seguir o fluxo contrário. Ao mesmo tempo em que precisava interagir com as pessoas pra transpor aquela barreira, queria dar um salto gigante e pular por cima delas, sem saber ao certo pra onde devia ir. 

Lembrou-se que acordara em sobressalto, com a casa toda vazia aos olhos anuviados e liguentos dele. Lembrou-se de que todas as manhãs, ele que já tinha seus quase trinta anos, acordava com o irmão adolescente na porta de seu quarto, curioso por encontrar o que havia naquele cômodo que atraía uma pessoa para ficar o dia todo trancada lá. Lembrou-se que nunca impedia o irmão de entrar, porque saía pra pegar o café da manhã e ir ao banheiro e rapidamente voltava e mandava o mano chispar dali. Lembrou-se que nunca cuidava de guardar suas pesquisas sobre formas de desviver. 

De repente sua visão se clareou, já sabia onde estava, começou a correr e dar com os ombros nas pessoas. Apercebeu-se de que estava em casa, de que realmente acabara de acordar, com os olhos liguentos e anuviados, como era comum todas as manhãs... Sem o irmão adolescente na porta com olhos compridos e curiosos. Passou pela sala e realmente tinha um mundaréu de gente. Adentrou a cozinha. Sem café da manhã. Somente prantos. 

Viu a mãe ajoelhada no chão, imersa numa poça de sangue, tão vermelho quanto vivo, fresco, balançando pra trás e pra frente, como se quisesse ninar alguém. Prantos da mãe, prantos do pai... No chão estendido e abraçado ao caderninho, o irmão adolescente, sem vida... 

Sua primeira reação, num contraditório a todo comportamento que sempre tivera, foi de sacudir aquele corpo inerte, fazê-lo voltar à vida. Sem meias palavras, sem estar cabisbaixo, sentiu raiva, porque não saberia seguir sozinho, porque não tinha mais como viver outra vida ao lado do irmão, sentiu culpa porque tinha feito excelentes pesquisas... 

Mas não conseguiu fazer nada além de observar... Aos poucos seus olhos viam tudo claramente, os familiares que estavam ali, os amigos do irmão mais novo, algumas pessoas que não via há anos e outras que via sempre, mas com quem nem sequer falava, o pai, a mãe, o pessoal da perícia... 

Aos poucos percebeu que precisava dos abraços, que precisava dos consolos, mas que ninguém estava ali por ele. Não parecia, mas lhe fervilhavam as ideias. Não pode fazer nada, a não ser ficar imóvel, totalmente rasgado por dentro. Ajoelhou-se ao lado da mãe e começou a balançar para frente e para trás, como se estivesse ninando alguém. Porque diante da morte, por mais que se saiba muito, por mais que se presencie muito, nunca podemos prever nossas reações...


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