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Anosmia 3 de maio, 2020

“O que eu faço é imaginar, e na minha cabeça não existem cheiros ruins”. Lindo, porque é a visão de alguém que com propriedade pode falar da anosmia e de alguém que vê a vida com olhos de doçura... Mas existem cheios ruins sim. 
A humanidade é cheia de gente diferente, diferente no pensar, no ser, no agir, mas diferente na fisiologia também. Não se trata de falar hoje de síndromes, mas de uma anomalia que pode ter diversas causas e que afeta a capacidade de sentir cheiros. Para alguns isso é quase irrelevante, porque se acostumam com a falta, para outros é bastante impactante, como se tivessem perdido algo, mesmo para aqueles que nasceram sem sentir cheiros, essa sensação de ter perdido algo pode se duplicar, porque sentem a falta de algo que nunca tiveram, como acontece com todos nós, em alguns relacionamentos, só pra termos um parâmetro de comparação à altura. Esta é uma condição de um número razoável de pessoas no mundo. De fato, eu fui procurar, mas os dados de saúde não mostram um panorama mundial, então talvez possamos pensar em algo como, uns dez por cento da população. Eu mesma, que não conheço tantas pessoas no mundo, conheço apenas duas pessoas com essa condição, uma que nasceu assim e outra que tornou-se anôsmana após uma cirurgia de tireoide.
Pessoas com anosmia precisam aprender a encarar as coisas de outra forma, mas, por não ser algo visível, como uma deficiência física num membro, por exemplo, não causa empatia em quase ninguém. E talvez nem seja preciso causar empatia em alguém, mas nos ajuda a perceber como a felicidade está nos detalhes, do cheiro que a gente não sente, mas pode imaginar e cria uma memória afetiva pra isso, que não se apaga nunca mais. A esta altura você já deve estar sentindo vários cheiros e se tiver anosmia, já está imaginando vários...
Existem cheiros ruins reais e cheiros ruins poéticos, como os bons cheiros reais e poéticos também. Talvez você não concorde, mas café passado, churrasco e alho frito têm um cheiro bem mais atrativo do que os próprios, provavelmente porque os laços com café, churrasco e alho frito vão além do paladar, eles lembram reunião. Tem sempre aquele perfume que lembra aquela pessoa especial que amamos, ou a casa da nossa infância, ou o cheiro da nossa mãe, ou de banana frita que lembra a casa da avó, ou aquele cheiro que a gente chama de cheiro de pó quando chove, cheiro de chuva, que na verdade é o odor exalado pelas bactérias presentes no solo. O cheiro de carro novo, que pasmem, foi quase que criado em laboratório, uma obsessão das montadoras desde os modelos mais baratos até os mais caros, numa combinação de odores (entre os componentes principais do interior dos veículos) que possam se manter inalterados, claro, por tempo determinado, através de um processo de desgaseificação. Deve ser por isso, que tanta gente quer logo trocar de carro: vicia no cheirinho de novo! Mas não esqueçamos que os carros usadinhos têm cheiro e têm memória de cheiros, o que também é bem viciante! Aquela viagem incrível, o cheiro da gente no travesseiro, o cheiro das coisas proibidas das quais a gente um dia já gostou ou ainda gosta secretamente... Tem o cheiro de cachorro ou de gato pela casa, que alguns acham ruim, imagino que quando não os conseguimos ensinar sobre onde fazer as necessidades, mas acho que quando a gente tem esses bichanos, adora ficar cheirando as orelhinhas deles, aquele cheirinho de cera que é como se fosse mel, o mesmo cheiro que tem o miolo das flores, como as do campo, por exemplo. Os cães não têm esse hábito, mas os gatos, esfregam-se o tempo todo na gente e nas coisas da casa (que passa a se tornar somente deles quando se mudam pra algum lugar!), eles é que deixam seu cheiro, pra mostrar que aquilo ali tem dono sim. É claro que não é mais um cheiro tão poético assim, quando eles começam a demarcar seu território com o xixi, mas há várias maneiras de ensiná-los sobre convivência, a mesma convivência desprendida que precisamos aprender a ter quando dividimos a casa com gatos. Também tem o cheiro de lixo, que nos remete à fetidez urbana, o descuido, o descaso com aqueles que recolhem o lixo, tem o cheiro de carne podre, que nos lembra a decomposição de tudo... Tem o cheiro de politicagem, que nos faz seguir caminhos bem distantes daqueles que fedem a ela. Tem o cheiro de maracutaia, de enganação, tem cheiro de todo tipo. 
Quando a gente sente os cheiros a gente lembra de coisas, de situações, de pessoas, de tempos, bons ou ruins, que podem nos agradar lembrar ou não. Quando a gente sente bons cheiros sabemos que estamos chegando no aconchego, um aconchego que já tivemos ou que ainda vamos ter, ou que sempre vamos ter. Quando sentimos maus cheiros, sabemos para onde não devemos voltar, mesmo que a gente precise estar lá todo dia. 
Mas alguns cheiros são nossos, são humanos, fisiológicos. É o cheirinho de cecê que muitos têm, do chulé, do suor, do leite da mãe, do gozo, do bafinho do bebê, do bafinho do adulto que acorda todo contaminado com as porcarias que come, aquele cheiro que cada gente tem. Cheiro que não dá pra disfarçar com perfume ou pasta de dente, mas que é cheiro nosso, de gente.
Talvez seja bom não sentir cheiros, ou imaginar que todos cheiros são bons... Sentir cheiros é uma coisa que tá ali, pra maioria das pessoas. Mas como seria ver o mundo, sentir o mundo, pelos olhos de quem não sente cheiros?
Uma pessoa pode nascer com anosmia, mas ela, a anosmia, também pode ser adquirida em variadas situações. Talvez seja algo como o cego que nasceu assim e o cego que foi perdendo a visão com o passar do tempo, ou de supetão. Ou talvez daquela pessoa que perdeu um membro importante do seu corpo e por muito tempo ainda consegue senti-lo ali. É um pouco difícil encontrar relatos de pessoas que não sentem cheiros, mas há algumas descobertas bacanas nessa busca. Alguém que foi perdendo o olfato aos poucos, ainda na adolescência, ou que depois de uma cirurgia na tireoide perdeu o olfato, ou que levou uma pancada na cabeça numa batida de carro, ou que trabalhou por 25 anos limpando equipamentos de hemodiálise com água sanitária e formol, ou que nasceu sem as glândulas olfativas, alguém que cheirou toda a cocaína que podia, alguém que manipulou por muito tempo produtos tóxicos, enfim, se você pesquisar, se considerar em sua busca diária a anosmia, ela vai estar ali, bem pertinho.
Os anôsmanos, desde bem cedo, ou assim que se tornaram um, precisaram se preocupar com algo pra o que, em geral, quem não sofre disso, nem dá muita atenção. Uma pessoa com anosmia precisa ter cuidados redobrados com tudo aquilo do que depende, para sua segurança, saber que os cheiros podem indicar perigo, mas provavelmente não retorce o nariz pros maus cheiros, porque não os sente, essa é uma parte bem massa! Mas também precisa criar maneiras de elogiar os cheiros bons, porque quando a gente recebe aquela comidinha especial, por exemplo, não há como não dispensar um elogio rasgado. Se somos crianças, precisamos aprender a experimentar novos cheiros e novos sabores, porque disso depende nosso desenvolvimento corporal.
Perde olfato e também parte do paladar, porque há uma ligação direta entre esses dois sistemas. Independente da condição que causa a anosmia, há sempre uma curiosidade ou aquela falta de lembrança (que conforme o tempo passa se apaga pra todos nós) com o cheiro da mãe, com o gosto da comida preferida, com o cheiro de pum. 
Todo mundo tem sempre uma história especial com os peidos. Isso é assim pra quem sente cheiros e pra quem não sente cheiros. Ou será que não? Em geral, pum a gente liberta perto dos mais íntimos, mas tem gente que não é assim, eu admiro isso: o desprendimento do pum! Sempre tem um dia em que a gente tá lá, com os amigos, fazendo alguma daquelas diversas coisas maravilhosas que fazemos com eles e o anôsmano, filho de Deus que é, solta um pum. Alguns segundos e caras feias! Que puta sacanagem é o que eles dizem, acusando o cidadão. É incrível como cada um pode ser identificado pelo peido que tem! Mas pro anôsmano, de nascimento ou que adquiriu anosmia depois de algum evento, puta sacanagem mesmo é ter uma namorada cheirosa, que acabou de sair do banho, deitada ao lado dele sem sentir cheirinho algum!! Ou então chegar com 49 tipos de fome, sabendo que tem uma comidinha deliciosa o esperando, e não sentir cheirinho algum! Ou então, saber que até os amigos, peidam ao lado dele, só porque ele não sente cheirinho algum! 
Talvez, no final de tudo, anôsmanos ou não, a gente possa aprender que imaginar e descrever os cheiros, para nós mesmos ou para aqueles a quem queremos bem, é um exercício maravilhoso. E que peidar livremente, é muito bom!

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