Certa vez, numa dessas conversas informais que temos pra passar o tempo nas conexões de traslado em viagens, nessas conversas em que não há grande compromisso com o que se fala e se ouve porque as pessoas provavelmente nunca se encontrarão de novo, um barbeiro me segredou seu desejo, quase que diário, de passar a navalha na jugular de seus clientes. O que ele disse, algo mais ou menos como, pra alguns ver o sangue é um pavor, pra mim é um gosto, naquele instante me fez vê-lo como uma pessoa bem estranha... Provavelmente ele seguiria sendo barbeiro, sem matar ninguém, ou não... E de fato, causa estranhamento tudo aquilo com o que não simpatizamos, ao menos em nível consciente, mas que de alguma forma, é latente em todos os humanos. Isso me fez pensar mais uma vez sobre a empatia, porque há experiências, dado o contexto em que vive cada pessoa, que são inimagináveis, ao menos, em nível consciente.
O desejo de matar é recorrente pra muitas pessoas, as comuns e as psicopatas. A ideia de aprofundar a curiosidade científica sobre ele resultou numa obra, “O assassino mora ao lado”, compilação de informações coletadas numa pesquisa do departamento de Psicologia Evolutiva da Universidade do Texas e da análise de relatórios da Polícia Federal estadunidense. Cerca de cinco mil pessoas entrevistadas e quinhentos mil relatórios sobre assassinatos analisados. Avassaladoramente e num resumo bem grosseiro, a pesquisa levou à conclusão de que um percentual muito grande de humanos, dentre os humanos consultados, já teve vontade de matar outros humanos, ainda que essa prática seja moralmente condenada pelas sociedades. Há uma relação de sobrevivência que aparece neste estudo, como sendo a prática do assassinato uma maneira eficaz que a humanidade tem tido, ao longo de sua evolução, de exterminar problemas. É fato que pessoas comuns, que não os psicopatas, têm ou já tiveram em algum momento da vida, vontade de matar outras pessoas. Quanta ironia, tentamos nos desgarrar de nossos instintos e cientificamente, parece que são eles que nos mantêm vivos...
Numa quinta-feira, logo na boca da noite porque muita gente já não circulava nos arredores, dia decidido para solução de problemas, mirou a cabeça do alvo. Portava um fuzil e disparou, quase que certeiramente. O tiro não acertou em cheio, mas por si só um ferimento daquele calibre era suficiente... Mesmo que o socorro chegasse rápido, não havia possibilidade de o indivíduo sobreviver, mas a ordem de comando era clara. Caminhou pontualmente até a vítima, sacou uma pistola e deu o tiro de misericórdia, porque às vezes, para matar, é preciso ter respeito com quem precisa morrer pelas suas mãos.
Quando um assassino se dá conta de que perdeu a liberdade, vem o arrependimento, na maioria dos casos, não é pelo fato de tirar a vida de alguém, mas por não poder continuar a fazer o que fazia, exterminando os problemas em sua vida. Quando se suicidam após os atos cometidos, como nos casos dos grandes massacres, de Hitler a Suzano, tiram sua própria vida ou por acreditarem que são seus únicos controladores, ou se o tempo passa e não são pegos, por se verem como únicos capazes de fazer justiça diante da própria miséria humana. Em geral, quando vemos uma reportagem sobre os assassinatos que ocorrem cotidianamente, nos referimos aos bandidos ou aos que morreram por estar na hora errada e no local errado, como um merecimento que tinham. Novamente se deve pensar com empatia.
Sua vontade era ver TV, mexer no celular, tomar uma cervejinha com o novo namorado depois de um dia cheio. E a criança, infelizmente não parava de chorar. Aquele choro a ensurdecia. Olhava praquela criança, fruto do relacionamento com o ex companheiro, todo dia lembrava da vida horrível que levava, queria parar com aquilo, acabar com aquela lembrança. Em seus relatos ao doutor, na delegacia, quando ficou sabendo que havia cometido um filicídio e iria a julgamento, disse que não havia pensado muito, mas se tivesse pensado, teria feito também. Imaginou que aquele corpinho pequeno, que pesava pouco, silenciaria se fosse jogado contra a parede várias vezes até o choro parar. E de começo, foi isso mesmo, mas não adiantou porque o choro só aumentava. Então, pegou a soda de desentupir o banheiro e fez a criança engolir. E o choro foi sumindo.
Rixa antiga, crime passional, dívidas de drogas, vingança, dinheiro, legítima defesa, transtorno emocional, perda momentânea da consciência devido ao uso de entorpecentes, lavação da honra, latrocínio, medo, depressão pós parto, vontade! Talvez não pareça importar porque alguém mata ou tem vontade de matar. Ter nas mãos a morte de outra pessoa ou tê-la nos pensamentos secretos, tem um grau muito semelhante de impulsividade, de instinto não contido, justamente aquilo, o instinto contido, que o bicho humano deveria ter para fazer parte da espécie humana, senão seria outra coisa. E talvez aqueles que quando são pegos por terem assassinado, sejam ainda mais admiráveis em confessar que não sentem remorso algum, mostrando algo que a grande maioria de nós tenta desesperadamente esconder.
Tomado pelo vício da paixão, matou por amor. Desde sempre possessivo, nunca aceitou ser contrariado. Depois de longos anos sofridos a esposa saiu de casa, entre idas e vindas, ao longo de muitos anos ela decidiu que era o melhor a fazer. Mas não porque havia outra pessoa, havia ela e a descoberta de seu amor por si mesma. Ele, como sempre, não aceitou ser contrariado, mas vestiu-se de uma pele de cordeiro, que em seu íntimo talvez até quisesse mesmo ter... Propôs a ex esposa que voltasse para o lar, que ele sairia... Ela, sem apoio da família, sem poder manter-se financeiramente, aceitou. Pela mesma porta que ela entrou, ele saiu. No bar da esquina, ele bebeu uma cachaça num gole só, escreveu uma carta de despedida finalizada com a inscrição “nos matei por amor”. Na madrugada, na calada da noite, certo de que ela dormia, entrou pela mesma porta que saíra. Naquele lar, pequeno em tamanho, girou as cinco bocas do fogão e abriu a porta do forno. Ficou ali respirando o gás até sentir-se levemente entorpecido, tirou do bolso a carta e colocou no criado mudo. Despiu-se, deitou-se ao lado dela e adormeceu.
A esta altura você deve estar numa verdadeira sinuca de bico entre assumir seus desejos secretos ou repudiar os assassinos. Mas não há um problema real aí, porque aquilo que ninguém fica sabendo não se torna público, vive apenas em nossa mente. O impulso violento existe em todos nós, alguns conseguem domá-lo mantendo-o preso na mente, outros não. De um modo geral, não há empatia com quem mata, independente do motivo que leve a matar.
A pele rosa, levemente espessa, algumas mamiquinhas. Era um pedaço considerável de barrigada de porco que precisava ficar marinando para ir ao forno e se transformar numa deliciosa refeição de domingo. Um almoço de domingo regado à pururuca de leitão e maionese. Enquanto perfurava a carne para que o tempero a penetrasse e lhe desse sabor, em nada pensava a não ser no cuidado em não deixar a faca atravessar a carne. Esse movimento repetido de levantar e baixar a mão, segurando a faca, vez ou outra, era interrompido pela resistência daquele couro, ainda cru, bem rosado. Tão mecânico o movimento que lhe sobrou tempo para divagar, para pensar sobre a vida. Aquela vida de todo dia e em como aquela pele de porco parecia pele de gente. A sua frente um relógio ensurdecedor apontando as horas, a vida passando numa rotina de enlouquecer. Ocorreu-lhe que a morte seria uma solução para os problemas, não a sua, mas a dele. Olhou novamente para o relógio e lembrou de seus afazeres e a ideia ficou apenas em sua cabeça, marinando como o porco de domingo.
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